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Acompanhando de perto nossa gloriosa e renomada imprensa cultural, fica claro que Vestido de Noiva, adaptação cinematográfica da lendária obra de Nelson Rodrigues, se tornou o saco de pancadas da moda, substituindo Sonhos e Desejos, mais um filme nacional massacrado pela crítica. Que pena, porque no caso de Vestido de Noiva o filme é realmente muito bom. Culpa sua – culpa? – é talvez ter ignorado as fronteiras que separam o cinema do teatro. E, bom . . . nem todo mundo que gosta de cinema gosta de teatro, ou melhor, nem todo mundo que entende de cinema entende de teatro. Vestido de Noiva é um filme absolutamente estruturado em texto, em diálogo. Não olhe para os reflexos de Alaíde, a personagem central da história, os efeitos especiais, os locais idílicos, ou mesmo uma mínima reconstituição da época (o filme se passa nos anos 1940 no meio da Segunda Guerra Mundial). Na produção do diretor Joffre Rodrigues, filho do Nelson, não tem nada disso, tem muito diálogo. Diálogos entre os personagens, os personagens com o espectador e os personagens com eles próprios. Além disso, uma característica recorrente nas peças de Nelson Rodrigues que se destacou mais pelo conteúdo psicológico do que pela estética cênica. A trama principal, que o público respeitável deveria ver, era o turbulento, mesquinho, ingênuo, imoral, vil, enfim, o interior humano desses seres, não a iluminação, os truques, os elementos da cena. O vestido de noiva, tanto a peça quanto o filme, não se passa no palco real, mas nos delírios de Alaíde. Menina que acaba de se mudar com a família para uma casa grande onde morava uma famosa cortesã, Madame Clessi. Em breve Alaíde encontrará os jornais nesta cafeteria e se entregará às suas memórias inoportunas. Até agora, o filme permaneceu linear, fácil de curtir. O problema é quando Alaíde é atropelada por um carro. A partir de então, a realidade é destruída. Já não sabemos o que é concreto, o que é imaginação e o que é ilusão de uma mulher à beira da morte. E é aqui que o filme adquire sua força dramática e se funde com o teatro. É preciso ler os personagens, entender suas motivações, extrair dos diálogos o que é a verdade, o que é a visão, a alucinação. O que realmente aconteceu e qual é a fantasia. Quem são os vivos e o que são os fantasmas No meio da trama, Alaíde diz que se sente confusa, por não saber o que é real e o que não é, enfim, a intenção era a mesma. Confunda os personagens e o espectador. Não em vão os críticos, acostumados com hambúrgueres e fast food cinematográfico, não digeriram o filme. O vestido de noiva é para quem tem um paladar requintado. Porém, apesar de o texto ter o pedigree de Nelson Rodrigues, são os atores que fazem jus à excelência do nosso maior dramaturgo. Afinal, o teatro é a terra santa da atuação (e o Vestido de Noiva é uma peça filmada, para o bem ou para o mal). Simone Spoladore é digna no papel de Alaíde, linda, à luz da fotografia seca de Nonato Estrela. Bete Mendes convence também no papel da mãe, que comicamente passa o filme inteiro enxugando o suvaco com um leque, licença para o fantástico e o absurdo, sempre presente nos textos de Nelson. Marília Pêra como Madame Clessi, principal alvo dos delírios de Alaíde, tem razão quanto ao papel, mas com um sotaque francês que agora parece afetado e artificial, mas que não mancha todo o ar teatral do filme. No entanto, os grandes ativos da produção são Marcos Winter e Letícia Sabatella. O inverno, sempre malvado, mesmo na televisão, incorpora como luva Pedro, o marido infiel de Alaíde. Já se passou muito tempo desde que vi um valentão tão bom, legal e confortável nos filmes como um vilão. Sabatella, como a irmã ciumenta e vingativa, aparece pequena, apenas na segunda metade do filme, mas sua figura é mais tipicamente Rodrigueana; mal, disfarçado, trágico, incestuoso. O jogo de Nelson Rodrigues entrou para a história. E também teve a ousadia de combinar as duas linguagens, teatro e cinema, na mesma escala. A peça, encenada em 1943, teve a luz do cinema e utilizou a peculiaridade de contar vários enredos ao mesmo tempo, em várias cenas sobrepostas. Não é à toa que é considerado o ponto zero do teatro moderno no Brasil. Como o filme, também foi alvo de fortes críticas na época, mas mudou drasticamente a forma como o teatro é feito no Brasil. Graças à revolução do vestido de noiva, Nelson Rodrigues, que leva seus textos da Polônia para Miami, é hoje uma referência fundamental no teatro brasileiro. Por isso, é curioso que sua prima da ópera tenha sido tão mal recebida pela inteligência cinematográfica, a mesma crítica que defende a animação “Deu a Louca na Chapeuzinho” cochilando na mostra Vestidos de Noiva. Nada contra a animação gringo . . . mas algo parece realmente fora do lugar. Críticos do meu Brasil, aconselho a ir mais ao teatro (sempre há uma obra-prima em exibição), ou a ler os livros da autora de Bonitinha Mas Ordinária que são relançados -todos- pela Lei das Editoras da Casa. O único risco é se apaixonar por suas intrigas transcendentes e seus personagens mediúnicos humanistas. Ou melhor, vá ao cinema enquanto tem tempo e dê uma olhada no vestido de noiva. Gritando Obviamente um dos melhores filmes do ano. Um agradecimento especial a Pedro da Costa.